Mãe em Janaúba: “Só consegui reconhecer meu filho pelos dentinhos”

Jane Kelle com a foto filho, Ruan Miguel, que morreu na tragédia. B.P.

(POR BREILLER PIRES, EL PAÍS) Uma peregrinação em desespero. Assim que foi informada pelo telefone que um incêndio havia tomado a creche onde o filho estudava, Jane Kelle da Silva Soares correu para o local, que fica a menos de um quilômetro de sua casa. Policiais impediram que ela entrasse. As vítimas já haviam sido levadas para os postos de atendimento de emergência da cidade de Janaúba, no norte mineiro. Ela passou de hospital em hospital, de leito em leito, e, depois de mais de três horas de agonia, ainda não havia encontrado o filho. Faltava a funerária. Respirou fundo, foi em frente e logo percebeu que Ruan Miguel Soares Silva, de quatro anos, entraria para a trágica cifra das oito crianças que morreram queimadas no atentado cometido pelo vigia Damião Soares dos Santos na última quinta-feira. “Só consegui reconhecer meu filho pelos dentinhos”, conta Jane.

Ruan já estava escrevendo o próprio nome e passava parte do dia na creche municipal Gente Inocente desde fevereiro, quando Jane, desempregada, resolveu matriculá-lo para poder fazer bicos como diarista e complementar a renda. Ela bancava as despesas com 134 reais do Bolsa Família e, mês sim, mês não, mais 150 reais de pensão pagos pelo pai do menino.

Se em muitos aspectos a história de Jane é semelhante à de várias mães do bairro pobre de Rio Novo, em Janaúba – responsáveis sozinhas pela educação dos filhos, a única chance de seguir trabalhando era contar a creche –, em outros seus percalços e o desfecho cruel com Ruan têm tintas dramáticas únicas. Mesmo antes da quinta-feira, um incêndio já marcara a história da família. Aos três anos, Ruan Miguel aproveitou um momento de distração da mãe, que havia deixado um isqueiro em cima da mesa, e acabou provocando um incêndio na casa em que viviam em Paraguaçu, a mais de 800 quilômetros de Janaúba. Enquanto as chamas se espalhavam pelo quarto, queimando seu berço e o colchão, ele ficou imóvel até Jane aparecer para resgatá-lo. O quarto ficou destruído. E a vida dos dois mudou. Após o acidente doméstico, o marido resolveu se separar, culpando-a, segundo Jane, pelo acontecido. “Ele disse que eu e o menino deveríamos ter morrido no incêndio. Me abandonou depois disso”, diz ela, que voltou, com Ruan, para a casa da mãe. Depois disso, Ruan Miguel parecia traumatizado com fogo. Sempre que via algo em chamas, corria assustado.

“A sorte é que minha mãe sempre me ajudou muito”, ressalta Jane. “Se não, eu estaria perdida. A mãe que a ajuda a enfrentar o luto é Aneis Barbosa da Silva, 76 anos, mãos e pés calejados e tragédias próprias e passadas para contar. Antes de se estabelecer no bairro com ruas de terra, Aneis trabalhava duro na roça em plantações de algodão e feijão. Dos 14 filhos, apenas seis estão vivos. Nem de todas as mortes ela se lembra exatamente, mas não faltam no relato enfermidades da pobreza e da falta de médicos: o mais velho morreu de doença de Chagas, aos 39 anos, outro teve um caso de tétano e ela lembra ainda de um aborto espontâneo. Viúva precoce, ela perderia a casa própria numa chuva forte – o local onde vive agora foi erguido graças a um mutirão da comunidade. “Sofri muito, mas nunca me desesperei”, diz ela. O exemplo de resistência da matriarca da família Silva, que agora contabiliza 15 netos, tem ajudado a amenizar a dor pela perda de Ruan. “Nosso orgulho é que, apesar de todas as dificuldades, nunca precisamos roubar nada de ninguém para poder sobreviver”, afirma a filha mais velha, Maria de Jesus.

A família se esforça para não guardar ressentimentos de Damião, o ex-funcionário da prefeitura que cometeu o crime. “Pedimos a Deus que abençoe a alma dele. E também a sua família, que deve estar sofrendo muito”, prega Aneis. Os familiares, no entanto, se dizem decepcionados com as autoridades do município. Acreditam que Ruan e outras crianças poderiam ter sobrevivido caso a creche, que não tinha extintor de incêndio e nem alvará do Corpo de Bombeiros, contasse com equipamentos de segurança contra incêndios.

No sexta, o velório de Ruan encheu o quintal da casa. E Jane Kelle conta ter encontrado alguma força nas inúmeras manifestações de apoio recebidas nas últimas horas. “Ganhei abraço de gente que eu nem conhecia. Esse carinho ajuda demais”, conta a mãe, de 29 anos. Enquanto conversa com a reportagem do EL PAÍS, lembra de Ruan e acaricia uma foto dele, tirada um dia antes da morte. “Que menino danado! Corria pra tudo quanto é lado. Se deixasse, andava de bicicleta o dia inteiro. Todo mundo gostava dele. O que vai ser de mim sem o meu menino?”

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